Entre A Repetição E A Mudança, Onde Você Está?

“ O quinto planeta era muito curioso. Era o menor de todos. Mal dava para um lampião e o acendedor de lampiões... O principezinho não podia atinar para que pudessem servir, no céu, num planeta sem casa e sem gente, um lampião e o acendedor de lampiões (..


Entre A Repetição E A Mudança, Onde Você Está?

Quando abordou o planeta, saudou respeitosamente o acendedor:
- Bom dia. Por que acabas de apagar teu lampião?
- É o regulamento, respondeu o acendedor. Bom dia.
- Que é o regulamento?
- É apagar meu lampião. Boa noite.
E tornou a acender.
- Mas por que acabas de acendê-lo de novo?
- É o regulamento, respondeu o acendedor.
- Eu não compreendo, disse o principezinho.
- Não é para compreender, disse o acendedor. Regulamento é regulamento. Bom dia.
E apagou o lampião.
Em seguida enxugou a fronte num lenço de quadrinhos vermelhos.
- Eu executo uma tarefa terrível. Antigamente era razoável. Apagava de manhã e acendia à noite. Tinha o resto do dia para descansar e o resto da noite para dormir...
- E depois disso, mudou o regulamento?
- O regulamento não mudou, disse o acendedor. Aí é que está o drama! O planeta de ano em ano gira mais depressa, e o regulamento não muda!
- E então? Disse o principezinho.
- Agora, que ele dá uma volta por minuto, não tenho mais um segundo de repouso. Acendo e apago uma vez por minuto! "
Este é um trecho da maravilhosa obra de Antoine de Saint-Exupéry "O Pequeno Príncipe". Foi publicada pela primeira vez na versão francesa em 1943 e no Brasil, em 1952. Mais de meio século transcorreu desde então, não deixando dúvidas de que o tempo passa e que de lá para cá o mundo vem se transformando a cada segundo.
É muito provável que a maioria de nós já tenha ouvido falar do Pequeno Príncipe. Bem provável também que a maioria dos brasileiros já tenha visto a sigla ABNT _ Associação Brasileira de Normas Técnicas _ órgão oficial responsável pela normalização técnica no Brasil. Segundo consta, as normas da ABNT se baseiam em estudos consolidados da ciência, tecnologia e experiência acumulada, visando benefícios para a comunidade, envolvendo os mais variados setores e segmentos sociais, desde a indústria até a educação. A missão da ABNT é "prover a sociedade brasileira de conhecimento sistematizado, por meio de documentos normativos, que permita a produção, a comercialização e uso de bens e serviços de forma competitiva e sustentável nos mercados interno e externo, contribuindo para o desenvolvimento científico e tecnológico, proteção do meio ambiente e defesa do consumidor" (http://www.abnt.org.br).
E onde entra o Acendedor do Pequeno Príncipe? Para começar a ABNT foi fundada em 1940, três anos antes da publicação de Saint-Exupéry. E, bem que o discurso do Acendedor poderia ter sido inspirado nas dificuldades das normas oficiais, e oficializadas, acompanharem as mudanças que impactam no nosso sofrido ecossistema. É fácil nos identificarmos com a figura do acendedor! Vejamos, exemplificando em uma área que está mais próxima da minha atuação, que é a Educação: A ABNT é bem conhecida entre os estudantes brasileiros porque é ela que fornece a maioria das especificações técnicas exigidas para a produção e formatação de trabalhos escolares, científicos e acadêmicos, como relatórios, projetos, monografias, dissertações, teses, estabelecendo, por exemplo, a forma de apresentação, a formatação de textos e referências, entre tantos outros detalhes. Essas especificações podem ser encontradas na ABNT NBR 6023, 6027, 6028, 10520, 14724.
Embora se entenda a necessidade de um padrão que unifique a apresentação dos trabalhos, é difícil de explicar porque há questões que seguem na contramão de tudo o que se tenta ensinar e educar com relação ao desperdício e a consciência ambiental. Dá para entender, por exemplo, porque a norma diz que os textos devem ser formatados com espaçamento 1,5 ou 2 entre linhas, exigindo o dobro de folhas para a redação do que se o mesmo texto fosse escrito em espaçamento simples? (Aliás, vale lembrar que antes da invenção do word e assemelhados tudo era escrito em espaçamento simples e podia ser lido perfeitamente). Que se tenha que utilizar, por puro valor estético, diversas folhas individuais para expor elementos pré-textuais quase sempre repetitivos (capa, folha de rosto, epígrafe, resumo, dedicatória, agradecimento, etc.)? Ou porque deixar uma margem de dois ou três centímetros em todas as bordas quando se poderia escrever pelo menos mais três linhas em cada página? Qual a razão real para que não se possa imprimir no verso das folhas? Só quem circula no meio para saber a quantidade de papel inutilizado após uma banca de qualificação de projeto, só para citar um exemplo, onde são impressas em média de três a cinco exemplares, com no mínimo 100 páginas cada um, os quais após a apresentação são sumariamente descartados. Multiplique isso pelo número de cursos de graduação e pós-graduação existentes e pelo número de alunos que anualmente realizam a operação e veremos que o impacto ambiental é considerável.
Não falo apenas da repercussão concreta disto no consumo de papel, tinta, energia. Refiro-me, sobretudo, ao impacto pedagógico e educacional que a mensagem produz: é necessário seguir as normas ainda que elas sejam potencialmente destrutivas e desconsiderem os tempos atuais. É o regulamento. Ponto.
A visão estratégica de gestão da ABNT corresponde ao desenvolvimento de "uma ABNT ágil que responda com eficiência às demandas do mercado e da sociedade, comprometida com o desenvolvimento brasileiro, de forma sustentável, nas dimensões econômica, social e ambiental." Como ideal esta visão parece bem interessante, porém, denota limitações em sua aplicabilidade e exequibilidade evidenciadas pela realidade. Não se trata de desmerecer os princípios e esforços da ABNT ou qualquer outra entidade que tenha propósitos similares, muito válidos em suas intenções, mas de questionar criticamente nossa atitude e postura como sociedade frente ao que recebemos normatizado. Somos responsáveis não apenas por seguir os padrões, mas também por questioná-los, estabelecê-los e repassá-los ou não às gerações futuras. As crianças de pré-escola de hoje solicitam uma folha de papel oficio em branco, nova, para cada rabisco que tentam fazer, sendo quase uma ofensa oferece-lhes uma folha usada para rabiscarem o verso. Basta verificar na relação dos materiais das creches e escolinhas para crianças de menos de três anos a quantidade de papel ofício solicitada aos pais! O ensino superior do nosso país reforça esta sensação de recursos ilimitados e falta de alternativas inteligentes e sustentáveis, o que parece ainda mais estranho em uma Era em que a tecnologia virtual é acessível em larga escala: os procedimentos precisam tanto de impressão em papel para serem oficializados? Quem frequenta congressos e jornadas acadêmicas tem noção do desperdício de material em apresentações em pôsteres de papel, quando poderiam ser apresentações por meio de equipamentos multimídias, por exemplo.
Mas é o regulamento, sigam-no cegamente! Por ironia, somos nós, sociedade brasileira, os campeões em gambiarras e jeitinhos para "facilitar" a vida. Pena não utilizarmos este dom da criatividade para inventar e lutar por normatizações que contribuam para soluções ecologicamente adequadas. Tenho certeza que há por aí, em todas as áreas do conhecimento e da ciência, muitos brasileiros cheios de boas ideias e soluções para contribuir com entidades como a ABNT. Não seria o caso de ouvi-los? Não seria o caso dos cidadãos se interessarem em propor sugestões e melhorias?
"O planeta de ano em ano gira mais depressa, e o regulamento não muda!"
Afinal, entre a repetição e a mudança, onde você está?

 

Entre A Repetição E A Mudança, Onde Você Está? Tárcia Rita Davoglio
Psicóloga/Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas; Doutoranda em Psicologia/PUCRS; Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS; Especialista em Gestão Empresarial/FGV; Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS; Especialista em Psicopatologia do Bebê/Universidade Paris XIII-França; Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes. Empresa Perfil – Gestão e Avaliações.
Tel.: 51 8188-0733
E-mail: tarciad@gmail.com

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