O homem como agente de contaminação ambiental: quando sua influência acaba?

Os efeitos causados pela relação homem versus natureza não terminam nem mesmo após a morte, pois podem continuar dependendo do modo de sepultamento


O homem como agente de contaminação ambiental: quando sua influência acaba?

Os cemitérios podem ser comparados a aterros controlados para lixos domésticos, compostos basicamente por matéria orgânica que irá liberar diversos tipos de gases. Porém, é importante considerar que metais pesados, advindo de próteses, materiais das urnas e outros, vão dar também sua contribuição poluidora, visto que os ácidos orgânicos gerados na composição cadavérica irão reagir com esses metais, considerando ainda os resíduos nucleares advindos das aplicações recebidas pelo ser em vida. Contudo isso, o solo, que recebe esses ingredientes de uma forma direta ou indireta, irá se saturar e apesar de sua capacidade de autodepuração (resiliência) propiciando que neles se infiltrem tais ingredientes.
Além da contaminação, a má localização dos cemitérios é outro fator de dificuldade, pois o estado inalterado de alguns corpos – a exemplo da ocorrência de fenômenos como a saponificação (o corpo não se decompõe), nos locais onde o terreno é úmido, e a mumificação, em locais de solo arenoso – obriga à expansão da área o que ganha contorno dramático nas grandes cidades. Segundo Migliorini (1994), em São Paulo, os cemitérios dos Protestantes, da Consolação, do Hospital, na várzea do Tamanduateí, Colégio Delgado, e do Ipiranga, nos Campos Elíseos, construídos respectivamente em 1851, 1858, 1805, 1849 e 1875, não faziam parte, na época, da área urbana do município de São Paulo e, hoje, encontram-se inseridos na malha urbana da cidade.

Cultura histórica e atual
Pode-se falar em cemitérios a partir da Idade Média, quando se enterravam os mortos nas igrejas paroquiais, abadias, mosteiros, conventos, colégios, seminários e hospitais. Contudo, foi somente a parti do século XVIII, que a palavra começou a ter o sentido atual, quando por razões sanitárias, os sepultamentos passaram a ser ao ar livre, em cemitérios campais (Mâcedo, 2004).
No que se refere ao caso específico de contaminação das águas subterrâneas por cemitérios, embora os estudos a respeito sejam relativamente escassos existem alguns casos históricos. Assim, Bower (1978), registra que águas subterrâneas destinadas ao consumo humano estavam contaminadas por cemitérios nas proximidades de Berlim, no período de 1863 a 1867, com a proliferação de febre tifóide. Menciona também a captação de águas subterrâneas malcheirosas e de sabor adocicado nas proximidades de cemitérios de Paris, em especial em épocas quentes. Estudos de Schrops, 1972 (apud Bower, 1978), realizados na Alemanha Ocidental em um cemitério localizado em terrenos de aluvião não consolidados, comprovaram a existência de contaminação bacteriológica.
No Brasil os cemitérios horizontais são os mais comuns e, provavelmente, os que oferecem mais riscos de contaminação por resíduos quando não seguem uma série de normas e procedimentos. Mas o impacto não fica restrito apenas acontece após o enterro em covas. Em algumas cidades, como Porto Alegre, viu-se a necessidade de promover mudança no processo de tanatopraxia – técnica de conservação dos corpos, na qual se retira líquidos e se injeta produtos, a fim de deixar o corpo em melhor estado para o funeral. Os resíduos iam direto para a rede de esgoto, com alguns paliativos, mas que não resolviam o problema. Depois de três anos de pesquisa, passou-se a tratar esses resíduos antes de devolvê-los ao ambiente. E o resíduo grosso, chamado de lodo, fica em um tanque de contenção, para depois ser recolhido por uma empresa especializada e ter uma destinação correta.

Necrochorume
Após a morte, nos primeiros cinco meses o corpo humano sofre putrefação, que é a destruição dos tecidos do corpo por ação das bactérias e enzimas, resultando na dissolução gradual dos tecidos em gases, líquidos e sais. Os gases produzidos são H2S, CH4, CO2, NH3 e H2. O odor é causado por alguns destes gases e por pequena quantidade de mercaptan, substância que contém sulfeto de hidrogênio ligado a carbono saturado (Mâcedo, 2004).
Segundo Pounder (2011), dependendo das condições ambientais, a putrefação pode ser observada 24 horas após a morte, com a formação dos gases em dois ou três dias. A decomposição do corpo pode durar de alguns meses até vários anos, dependendo da ação ambiental.
Segundo Matos (2001), a composição do necrochorume em relação à carga microbiológica não é muito conhecida. Devido a sua composição química, é provável a ocorrência de que números elevados de bactérias degradadoras de matéria orgânica (bactérias heterotróficas), de proteínas (bactérias proteolíticas) e lipídeos (bactérias lipolíticas). De acordo com Bolivar, no necrochorume são encontradas bactérias que são normalmente excretadas por humanos e animais de sangue quente, como Escherichia coli, Enterobacter, Klebsiella Citrobacter (bactérias que formam o grupo coliforme total), Streptococcus faecalis; alguns clostrídios como Clostridium perfringes e Clostridium welchii, entre outros. Ainda segundo o autor, é possível que estejam presentes bactérias patogênicas, como Salmonella typhi, e vírus humanos, como enterovírus.

Microorganismos
O cadáver de um adulto, pesando em média 70 quilos, produz cerca de 30 litros de necrochorume em seu processo de decomposição. Esse líquido é composto por 60% de água, O homem como agente de contaminação ambiental: quando sua influência acaba?30% de sais minerais e 10% de substâncias orgânicas, entre as quais algumas bastante tóxicas, como a putrefina e a cadaverina: um meio ideal para a proliferação de substâncias responsáveis pela transmissão de doenças infecto-contagiosas, entre elas a hepatite e a poliomielite. Em razão dessas características peculiares, esses microorganismos podem proliferar num raio superior a 400 metros do cemitério.
A sobrevivência e o transporte dos microorganismos em subsuperfície dependem de três fatores básicos: clima, tipo de solo e natureza dos microorganismos. Os parâmetros que influem são muitos: temperatura, precipitação, teor de umidade do solo, atividade microbiana, pH, quantidade de matéria orgânica presente, textura do solo, e outros (Matos, 2001). Os estudos sobre a influência dos fatores citados na sobrevivência e transporte dos microorganismos. Segundo o autor, as bactérias em geral, sobrevivem por mais tempo em temperaturas mais baixas, em solos mais úmidos, com menor atividade microbiana, em ambiente mais alcalino e com maior quantidade de matéria orgânica. Os vírus também são mais persistentes em temperaturas mais baixas; alguns sofrem inativação na presença de atividade microbiana, mas outros são protegidos pela adsorção, podendo sobreviver por mais tempo.
A presença de matéria orgânica e de cátions também pode prolongar a sobrevivência por adsorção, em alguns casos. Os vírus são mais persistentes em ambiente mais úmido e em pH próximo a neutro. Portanto, solos com alto teor de umidade e levemente alcalinos são os mais favoráveis para a sobrevivência dos microorganismos. O tempo de sobrevivência de bactérias e vírus varia muito; em geral, é de dois a três meses, apesar de terem sido observados períodos de sobrevivência de até cinco anos em condições ideais (Matos, 2001).

Resolução CONAMA 335/2003
A polêmica em torno das possíveis contaminações que as necrópoles causam ao meio ambiente forçou os órgãos responsáveis a fiscalizar e multar os cemitérios públicos e privados no Brasil que não se adequarem às novas normas da legislação.
Legislação é o conjunto de leis, ou seja, conjunto de normas impostas, resultante da vida em sociedade, onde o direito de um deve ir até onde não prejudique o próximo. Hoje, este conceito se amplia a esfera ambiental, procurando o uso racional dos recursos naturais.
Neste contexto, foram criadas legislações específicas com base na área ambiental, algumas de abrangência nacional, estadual e municipal, onde todos os cemitérios deverão adequar-se às novas exigências da Resolução 335 de 03 de Abril de 2003, do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA.
Embora o CONAMA considere o respeito às práticas e valores religiosos e culturais da população, suas Resoluções CONAMA nº 001 de 23 de janeiro de 1986 e 237 de 19 de dezembro de 1997, indicam as atividades ou empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental e remetem ao órgão ambiental competente a incumbência de definir os critérios de exigibilidade, o detalhamento (observadas as especificidades), os riscos ambientais e outras características da atividade ou empreendimento, visando a obtenção de licença ambiental.
Especificamente na Resolução 237 de 1997, é permitida a criação de critérios para agilizar e simplificar os procedimentos de licenciamento ambiental das atividades e empreendimentos similares, visando a melhoria contínua e o aprimoramento da gestão ambiental. Sendo assim, e considerando que os cemitérios são fontes de contaminação, havendo necessidade de regulamentação dos aspectos essenciais relativos ao processo de licenciamento ambiental dos mesmos, foi elaborada a Resolução 335 em 03 de abril de 2003, a qual dispõe sobre o licenciamento ambiental de cemitérios. Esta resolve, entre outros artigos, que:
Art. 1º - Os cemitérios horizontais e os cemitérios verticais, doravante denominados cemitérios, deverão ser submetidos ao processo de licenciamento ambiental, nos termos desta Resolução, sem prejuízo de outras normas aplicáveis à espécie.
§ 1º - É proibida a instalação de cemitérios em Áreas de Preservação Permanente ou em outras que exijam desmatamento de Mata Atlântica primaria ou secundária, em estágio médio ou avançado de regeneração, em terrenos predominantemente cársticos, que apresentam cavernas, sumidouros ou rios subterrâneos, em áreas de manancial para abastecimento humano, bem como naquelas que tenham seu uso restrito pela legislação vigente, ressalvadas as exceções legais previstas.
Art. 8º - Os corpos sepultados poderão estar envoltos por mantas ou urnas constituídas de materiais biodegradáveis, não sendo recomendado o emprego de plásticos, tintas, vernizes, metais pesados ou qualquer material nocivo ao meio ambiente.
Parágrafo único - Fica vedado o emprego de material impermeável que impeça a troca gasosa do corpo sepultado com o meio que o envolve, exceto nos casos específicos previstos na legislação.
Art. 9º - Os resíduos sólidos, não humanos, resultantes da exumação dos corpos deverão ter destinação ambiental e sanitariamente adequada.
Parágrafo único - Fica vedado o emprego de material impermeável que impeça a troca gasosa do corpo sepultado com o meio que o envolve, exceto nos casos específico previstos na legislação.
Art. 15 - Além das sanções penais e administrativas cabíveis, bem como da multa diária e outras obrigações previstas no Termo de Ajustamento de Conduta e na legislação vigente, o órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá exigir a imediata reparação dos danos causados, bem como a mitigação dos riscos, desocupação, isolamento e/ou recuperação da área do empreendimento.
Art. 16 - Os subscritores de estudos, documentos, pareceres e avaliações técnicas utilizados no procedimento de licenciamento e de celebração do Termo de Ajustamento de Conduta são considerados peritos, para todos os fins legais.

Problema atual
No Brasil foi constatado que mais de 600 cemitérios estão em situação irregular e cerca de 75% dos cemitérios públicos apresentam problemas de contaminação, enquanto que nos particulares o índice é de 25%. Estes fatos ocorrem pela falta de cuidado com o sepultamento dos cadáveres e localização em terrenos inapropriados. Construídos sem um planejamento de impacto ambiental, os cemitérios tradicionais favorecem sobremaneira a contaminação das águas subterrâneas.
Outro problema que afeta o lençol freático, em determinadas condições geológicas e observadas em um grande número de cemitérios, é o da decomposição parcial estacionária, gerando fenômenos conservativos, como a saponificação e a mumificação.
A decomposição é um fenômeno que depende também da umidade do ambiente, o que promove, ou não, a aceleração do processo. Sob condições de ar seco e quente a ação microbiana é impedida, favorecendo a mumificação. Os solos que a propiciam são os do tipo arenosos das regiões desérticas e solos calcários, onde pode ocorrer uma fossilização incipiente, devido à substituição catiônica do sódio e do potássio pelo cálcio (histometabase). Por outro lado, se o ar for excessivamente úmido, há o favorecimento da saponificação, onde a gordura adquire um aspecto céreo. Este processo ocorre mais facilmente em solos argilosos, porosos, impermeáveis ou pouco permeáveis, quando saturados de água.
Ambos, mumificação e saponificação, atrapalham a decomposição dos corpos e neutralização dos efluentes, prolongam a permanência dos corpos semi-decompostos e mantém o perigo de contaminação latente, dada a oferta de vetores disponíveis e mobilizáveis.


Metodologia
Abaixo os principais métodos analíticos, equipamentos e variável de controle utilizado para a análise da qualidade de água em solos.

O homem como agente de contaminação ambiental: quando sua influência acaba?


Considerações finais
É imprescindível que se considere a implementação de um monitoramento sob o aspecto legal do tema, mas para tal, faz-se necessário uma investigação que ofereça resposta a todas as variáveis, possibilitando-nos uma visão das necrópoles como um agente integrante do meio urbano e carente de planejamento e acompanhamento.
O setor funerário também tem investido em novas tecnologias para reduzir cada vez mais os impactos da despedida. Um exemplo é cremação criada pela empresa escocesa Resomation, que oferece uma mistura de água em alta temperatura e hidróxido de potássio. O corpo é colocado em uma cápsula que, em seguida, é preenchida com o líquido alcalino. De duas a três horas depois, restam apenas os ossos, transformando em pó e entregue à família. A vantagem fica na ausência de emissões de gases do efeito estufa e do mercúrio emitido pela queima de próteses dentárias. A água restante do processo segue para estações municipais de tratamento e retorna ao ciclo hidrológico. Até agora, o processo foi aprovado para ser utilizado em alguns Estados Americanos e é avaliado pela Grã-Bretanha e outros países europeus.

 

O homem como agente de contaminação ambiental: quando sua influência acaba?Me. Luciano Peske Ceron
Engenheiro Químico (PUCRS), Doutorando Engenharia de Materiais (PUCRS), Mestre Engenharia de Materiais (polímeros/não-tecidos - PUCRS), Especializações em Gestão Ambiental (GAMA FILHO) e Gestão Empresarial (UFRGS). Tem experiência nas áreas: petroquímica (polipropileno, polipropileno aditivado, PET, borracha sintética, etil-benzeno), têxtil (fabricação de não tecidos, mangas filtrantes, palmilhas, persianas de não tecidos e plásticas em PVC), papel e celulose, tratamento de água e efluentes, tecnologia da informação, logística por software e professor.
Tel.: 51 9972 6534
E-mail: Ceron.Luciano@gmail.com

 

Referências bibliográficas

BOWER, H. Groundwater Hydrology. New York: McGraw Hill Book Company, 1978.
MÂCEDO, J. A. B. Águas & Águas. Belo Horizonte: CRQ-MG, 977 p., 2004. 
MIGLIORINI, R. B. Cemitérios como fonte de poluição em aqüíferos. Estudo do Cemitério Vila Formosa na Bacia Sedimentar de São Paulo. 1994. 74 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Geociências da USP, São Paulo, 1994.
POUNDER, D. J. Postmortem changes and time of death. Disponível em: <http:www.dundee.ac.uk.forensicmedicine/llb/timedeath.htm> Acesso em: 28 de outubro de 2011.

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