Tudo é água

A água existe no mundo muito antes da espécie humana. Mas fomos nós, humanos, que lhe demos nome, fórmula, diversidade de uso e que, certamente, seremos responsáveis pelo seu futuro.


A água existe no mundo muito antes da espécie humana. Mas fomos nós, humanos, que lhe demos nome, fórmula, diversidade de uso e que, certamente, seremos responsáveis pelo seu futuro.
No século XVIII, a água foi, cientificamente, definida como "corpo incolor, inodoro, insípido, composto de um volume de oxigênio e dois de hidrogênio, capaz de refratar a luz e decompor outros corpos". Tornou-se H20.
Porém, muitos séculos antes, um filósofo pré-socrático, difundiu outro conceito para a água, menos objetivo, mas igualmente verdadeiro e repleto de sentido. Tales de Mileto
(624-548 A.C.) foi muito perspicaz em suas observações empíricas da natureza: o calor necessita de água; a natureza é úmida; o que resseca morre; os germens são úmidos; os alimentos contêm seiva... Juntou a essas observações seus conhecimentos de astronomia para afirmar que a água é o princípio de tudo: tudo é água; tudo o que existe são transformações da água ou água transformada. Com essa afirmação Tales de Mileto consagrou-se o primeiro grande filósofo. Foi o próprio Nietzsche, no século XIX, quem elevou essa afirmação à qualidade de "filosófica", argumentando ser um pensamento que estabelece uma ideia sem apoiar-se em imagens ou em crenças místicas. Ao afirmar que a água é tudo, Tales teria descoberto na água o elemento físico presente em todos os seres, o elemento uno: tudo é um. Logo, tudo é água.

Tudo é água

Não há vida sem água. Não há água sem movimento. Tales de Mileto havia percebido o inédito: a água se transforma e se cria por movimento próprio e contínuo, sem que algo de diferente a ela precise mover-se. Ao contrário do que alguns humanos ainda supõem, é ela que comanda a vida. O ciclo da água, isto é, o ciclo hidrológico, revela esse movimento contínuo e incontrolável da água sobre, dentro e acima da Terra: de líquido para vapor, depois para gelo e novamente de volta para seu estado inicial. Tales de Mileto apontou, antes de muitos perceberem, uma realidade clara: para suportar transformações e permanecer inalterada, a água teria que ser um elemento eterno, menos perene que todos os demais. É pelo movimento do ciclo da água que nascem as diversas formas de vida, vegetal e animal. Foi na profundeza das águas oceânicas que se iniciou a vida na Terra.
Sendo a maior parte da água do planeta formada por oceanos, 96,5% para ser exata, não é de estranhar que o ininterrupto movimento das águas oceânicas, salgadas e não potáveis, tenha uma enorme importância à vida humana. A tal ponto que o modo linguageiro de traduzir emoções faz referência às águas oceânicas. Onda, maré, tsunami já não são mais apenas fenômenos típicos do movimento das águas, incorporando-se à nossa linguagem para descrever emoções e comportamentos.
As ondas se formam onde há grandes e profundas quantidades de água, como nos mares e oceanos, como resultado dos movimentos originados pela ação dos ventos. Na proximidade de locais de menor profundidade, como as praias, ou de encontro a rochedos, as ondas dobram e se quebram antes de suas águas retornarem ao mar. Embora sujeitas à influência de fatores climáticos, as ondas guardam em si uma espécie de poder, pois, são movimentos não controláveis, nem uniformes, nem possíveis a qualquer tipo de águas. Por isso, no senso comum, "tirar onda" é uma expressão usada em referência a fazer-se passar pelo que não se é; aparentar; fingir ser.
Os movimentos das águas oceânicas mais previsíveis são as marés. Influenciadas pelo sol e, principalmente, pela lua, o nível das águas avança e recua sobre a terra em intervalos fixos de tempo. Esses movimentos formam as cheias ou fluxos ao avançarem e o refluxo ou vazante ao recuarem. Segundo o dicionário Aurélio, maré também quer dizer fuxo e refuxo de acontecimentos humanos, que se associam ao humor e às oportunidades. Quando tudo está bem é "maré boa", quando tudo está mal se vive a "maré de falta de sorte". Nas adversidades, lutamos "contra a maré", fazendo menção ao esforço para resistir aos movimentos vindos de fora de nós, que podem nos afundar ou naufragar os melhores projetos. Nós esquecemos que as marés por definição são previsíveis; assim como são previsíveis as consequências de nossas escolhas.
Os tsunamis receberam o nome de um historiador grego preocupado em buscar as causas dos fenômenos, Tucídides, o primeiro a associá-los a sua verdadeira origem. Por muito tempo, o tsunami foi atribuído a ondas de marés equivocadamente, pois nada tem a ver com marés. Tsunamis são, de fato, movimentos de grandes volumes de água, que formam ondas gigantescas, ocasionados por abalos sísmicos ou outros fenômenos de massa de grande impacto. Por se deslocarem em direção à terra, quase sempre gerando estragos na região costeira, para o senso comum, guardam alguma similaridade aparente com as marés altas, que invadem e inundam. Fica fácil, então, compreender porque quando uma grande "onda" de "maré de falta de sorte" atinge alguém ou um acontecimento grandioso se apresenta, é logo denominado "tsunami": na linguagem metafórica, algo de proporção gigantesca com potencial para causar consequências devastadoras.
"Navegar na internet", "afogar-se em prazeres", "mergulhar em si mesmo", "nadar no seco", "morrer na praia", "naufragar nos negócios" são outros exemplos das muitas expressões coloquiais inspiradas na água.
A própria trajetória da água, simbolicamente, em muito lembra a evolução do ciclo vital dos humanos. As nascentes ou aquíferos - metaforicamente equivalentes à família - são locais mágicos, responsáveis por produzir a abundância cristalina que irá escorrer por longos períodos e se espalhar através de territórios desconhecidos. Ao transbordar das nascentes, a água irá delimitar e definir seu leito - assim como a pessoa ao afastar-se da infância -, transformando-se em córregos ou rios, tão longos e profundos como a força determinante que a faz emergir e os recursos que se apresentam no caminho.
As águas, como as pessoas, também podem se tornar fontes em vez de rios; não se espalhando, mas concentrando seu potencial em locais determinados. As fontes surgem quando os aquíferos que se formam entre rochas enchem com a água da chuva, esgotam sua capacidade e jorram para fora. Conforme a rocha se dissolve e se racha, se formam espaços que permitem à água fluir. Se o fluxo for horizontal, ele pode atingir a superfície do solo resultando em uma fonte. Se tivermos sorte, a fonte será grande o suficiente para formar lagos, atraindo para junto de si outras formas de vida, como os grandes líderes costumam fazer.
As fontes e nascentes, porém, representam apenas a porção visível e identificável de movimentos muito mais profundos. Sob elas se alojam as bacias hidrográficas - simbolicamente comparadas à civilização - para onde toda água da superfície é drenada. Bacias hidrográficas menores são contidas em bacias hidrográficas maiores. Ambas são muito importantes porque a corrente e a qualidade da água que emerge a superfície (aquíferos, rios, fontes) são afetadas por tudo o que acontece nas bacias; e tudo o que afeta a água da superfície da terra interfere na existência das bacias hidrográficas. Do mesmo modo, os indivíduos são afetados pela cultura de onde provém, mas também são responsáveis pela criação dessa cultura.
Ao longo dos leitos dos rios que não foram contaminados por dejetos e lixo, onde foi preservada a vegetação costeira e foram protegidas as nascentes e as bacias hidrográficas, vemos água límpida e cristalina, repleta de vida. A mesma vida que desejam as pessoas que se ocupam de cuidar de seu mundo interno, livrando-se de preconceitos, violências e ressentimentos, preservando laços familiares e construindo vínculos amorosos. Essas pessoas são tão vitais para a sociedade como água é para o planeta.
Talvez, se os movimentos da espécie humana e de cada pessoa ao logo de sua existência pudessem ser inspirados na perfeição dos movimentos do ciclo das águas, salvaríamos a nós mesmos e a água que nos dá vida.

 

Tudo é águaTárcia Rita Davoglio
Psicóloga; Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas; Docente e Educadora. Doutoranda em Psicologia PUCRS; Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS; Especialista em Gestão Empresarial/FGV; Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS; Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes.
www.dapsico.com.br tarcia@dapsico.com.br

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